Canto de lamento



Poema em homenagem às aldeias que vão ser arrasadas pelo TGV



António Igreja Velho


Verso I

Oh!... Minha aldeia meu canto cheio de mim,

Minha memória viva de todos dias!

És a mãe que me amparas e que me guias…

A soberba tem inveja de seres assim?

Se é pelo teu encanto que querem o teu fim,

Quem cala o lamento das tuas crias

Se guardas delas o seu choro e alegrias?

Oh!… Suave e doce aldeia… pequena Guetim!

O que querem fazer contigo esses loucos…

Só por vaidade e brinquedo de uns poucos!

Verso II

Muitos povos pelo tempo te calcaram

E saciaram da água que te beberam!

Já não honram os filhos que em ti nasceram

Nem as enxadas que ao de leve te cavaram?

Gente que da tua terra se alimentaram,

Do teu moliço e lenha se aqueceram…

Como será o luto dos que te ergueram

Ao verem que ao meio te cortaram?

Quanto veneno há nestas democracias

Escondido nas mentiras de todos os dias!

Verso III

Por cada aldeia liberdade…!? Acorrentada

Ao despotismo de alguns “ bichos “ rancorosos

Transmudados em bonifrates gananciosos

Se pensarmos no mostrengo desta estrada!

Inútil, o povo nela não tem entrada…

Mas tem que a pagar! Escravos do prazer e gozos

Da casta dos casquilhos gaios mafiosos

Em passeio: gabirus, madames, canalhada…

“ Dirão “: Esses lordes precisam de largueza…

Há que espalhar o fedor da sua riqueza!

Verso IV

A miopia fraudulenta não os deixa ver

Ao lado dessa, uma pronta… que alegria!

Que é usada por todos no seu dia-a-dia.

Finórios, cartolas não podem ali conviver?

A realeza cheira mal até morrer!

Quanto nojo não pariu a democracia…

Estes madraços, ladrões, que dantes não se via

Hoje põem a canga em que sofre para viver!

Imperadores nas suas liteiras a passear…

Precisam cuspir em quem tem que os sustentar!

Verso V

Exigimos uma linha férrea de raiz”!...

Gritarão os comandantes desta marmelada

Afoitos no seu: “ou vai ou racha”! camarada.

“Trancas nas aldeias! Às favas é o que o povo diz”!

“Homessa! Querem aborrecer o nosso nariz”?

Como nunca usaram roupa remendada

Não gostam de ver remendo na sua estrada…

Se rachar fogem! Vão arruinar outro país.

Um pandemónio agindo sem vergonha

Acobertado pelas leis da sua ronha!

Verso VI

Quantas pequenas e lindas povoações,

Mãos cheias de vida que se amordaça

Com os muros do escárnio e da trapaça

Paridos pelas negras mentes dos barões!

Choram e sangram olhos e corações

Das mordidas desses ricos “cães de caça”.

Presos por trilhos… cancelas da desgraça;

Um presente em vida das grades dos seus caixões.

Estes ferros que a arrogância em vós cravou

São a herança que a peçonha nos deixou!

Verso VII

Arrasa-se o manto verde, nosso alento!

Bolhões de água são tapados pela cegueira

De quem só vê muito recheio na carteira

Esquecendo que em cada um há sentimento!

Esquecendo que nem só pão é alimento

Pois a alma se alimenta a vida inteira

Das raízes que a seguram na mesma leira!

E a levedam… como sendo o seu fermento.

Essa casta de marajás empedernidos…

Cacholas tranquilas com miolos corrompidos!

Verso VIII

Lá!... onde grassa a peste que conhecemos

E imperam os conluios de irmandade,

Somos pisados pelos decretos da maldade

Muito para além da pouca fé que neles temos!

Peste que conspurca até a água que bebemos

E se esconde no seu mundo sem verdade,

Impõe às aldeias um jugo sem piedade!

… Só nos resta a dignidade de nós mesmos.

Gente podre que violenta com risinhos

Escancarados por deboche em seus focinhos!



Verso IX

Temos que ser surdos a todo este barulho?

Temos que ser cegos a tanto lixo que se vê?

Temos que deixar em branco as notícias que se lê?

Temos que passar por cima deste entulho?

Temos que engolir todo este sarrabulho?

Temos que fazer vénias ao favor desta mercê?

Temos que deixar que nos tratem como gado, porquê?

Temos que aplaudir o acto deste esbulho?

Os meus setenta anos protestam ao ver tanta festa!

… por respeito à dignidade do tempo que me resta.

Verso X

Minha aldeia, uma luz que em mim não apagou!

Deste-me o teu colo sempre por onde andei…

Das minhas tempestades em ti me abriguei!

Foste o agasalho do que de mim em ti ficou

Quando na busca da vida o vento me levou!

Agora, marcada pelos ferros dos sem lei

O meu alto grito de revolta não calarei!

… o abraço deste filho que sempre te amou.

Pelo tempo, no aconchego da tua bondade

Te guardarei no meu cantinho da saudade…